domingo, 31 de maio de 2015

Velório da cruz



Aparício Silva Rillo


A escassa luz que se projeta da porta baixa do rancho, adivinha na meia sombra cavalos arreados. Quebra o silêncio da noite campeira um murmúrio de vozes.
Boleia a perna um que chega.
– Buenas noites...
– Chegue no mais, compadre, a reza recém começou.
Chapéu na mão, barulhando no chão batido a espora grande, adentra o arancho o índio recém-chegado.
Acotovela-se na sala pequena o vizindário. Ajoelhados uns, alguns poucos sentados, a maior parte de pé.
Chica Jordão, a rezadeira mais antiga daqueles pagos, vai desfiando na mão ossuda um rosário de contas castigadas.
– Quantos anos, dona Chica?
Bobagem, a pergunta. Se lembra que era moça em 93, por sinal que lhe mataram nessa guerra o moço noivo. Um pano preto segurando as mechas escassas do cabelo muito branco, emoldurando a cara pequena vincada de rugas e tristeza. Velha, a dona Chica Jordão. Só a voz conserva o timbre da mocidade ida e perdida.
– Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres...
Rezadeira buenaça, a dona Chica. Nem parece brotar do sumido daquele feito a voz que vai dizendo... que vai dizendo e repetindo a oração mui velha, numa cadência clara de fleto, marchador batendo casco.
– Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém.
Responde em coro a gente ali reunida, olhos postos na cruz talhada em angico, que se recosta na parede de pau-a-pique, de pé sobre a mesinha capenga. Não fosse heresia – que Deus perdoe – e se aformava que a cruz estava bonitaça, enfeitada assim com tanta fita, mal comparando um galho seco por cipós. Tremelicam as quatro velas, acendendo o colorido murcho dos molhos de flores sobre a mesa, botando luz no desbotado das imagens de santos. Pontifica um São Jorge, lança em riste.
Um que não soubesse – gente povoeira, se vê – perguntaria, mui chocho:
– Ainda que mal pergunte, que vem a ser isto, amigo velho?
O amigo velho arregalaria os olhos, de espantado. Povoeiro burro, la fresca!
– Vacê não sabe? Completa hoje sete dias que o Laudelino morreu – que Deus o tenha! Tamo velando a cruz que se vai botar no túmulo do finado.
A voz de sanga clara de dona Chica Jordão desfia a reza. relincha no parapeito um redomão. canta mais longe um cochincho. (Galo cantou, onze horas)
– Velório da cruz, seu moço...
*
Não sabemos se comum a todo o Rio Grande, o velório da cruz é um dos mais antigos costumes da fronteira e região das missões. Assinalamos a permanência desta tradição de fundo religioso nos municípios de Uruguaiana, Quaraí, Alegrete, Itaqui, Santiago, São Luiz Gonzaga e São Borja. Neste último, tivemos inclusive a oportunidade de participar da cerimônia.
Residindo há mais de cinco anos nesta zona, há bem pouco tivemos ocasião de tomar conhecimento deste costume, primeiro por informações e, afinal, por contato direto. Curiosos, repassamos velhas leituras, à procura do registro deste fato. Não o encontramos, porém, nem mesmo no Guia do folclore gaúcho, do mestre Augusto Meyer. Antônio Carlos Machado, o eminente folclorista e, sobretudo, historiador santiaguense, ora residente no Rio de Janeiro, também nada conhecia a propósito, como nos informou em palestra. Daí, ter-nos nascido o desejo – como diletantes do folclore – de registrar este costume tradicional de nossa gente simples, a fim de que, a exemplo de tantos outros, não se perca definitivamente.
Com pequenas variantes – ditadas por circunstâncias locais ou pessoais – o velório da cruz obedece ao seguinte ritual:
1. É realizado no sétimo dia após a morte do finado.
2. Inicia-se a cerimônia na hora exata ou o mais possível aproximada em que ocorreu o falecimento.
3. Um dos parentes do finado, quando não um carpinteiro do lugar, talha em madeira a cruz (geralmente madeira de lei), assinalando em baixo-relevo ou mesmo à tinta, o nome do defunto, data de nascimento e morte. Muito claramente.
4. Inicia-se o velório com o batismo da cruz – que segue o rito tradicional da cerimônia. Os pais ou parentes do morto escolhem um casal amigo para padrinhos – cabendo ao homem, via de regra, proceder o batismo. Molhando um ramo verde – serve qualquer ramo – num caneco ou copo d'água, asperge a cruz, ao tempo que diz as seguintes palavras: "Fulano (diz o nome do morto), eu te batizo em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém". Isto feito, os padrinhos abraçam os pais (quando os há) e parentes do morto, dizendo àqueles: "Um compadre (ou comadre) às ordens".
5. Os padrinhos, então, para todos os efeitos, passam a ser compadres dos pais do morto (ou na falta destes, do casal mais chegado ao morto), da mesma forma como se lhe tivessem batizado um filho.
6. A cruz é, então, colocada de pé sobre uma mesa, estando esta encostada em uma parede, onde se apóia a parte superior da cruz. Sua parte inferior (o pé), via de regra, repousa sobre um travesseiro ou colcha dobrada.
7. A cruz é enfeitada de fitas, de variadas cores, geralmente cor de rosa, azul e branca, quando o morto é "inocente" (criança, moça ou moço solteiro), e de cores mais escuras, quando adulto. Em cada canto da mesa, uma vela acesa, iluminando molhos de flores, imagens e estampas de santos os mais variados.
8. A cruz sempre deve estar de frente para a porta.

(Rillo, Aparício Silva. "Velório da cruz". <i>Jornal do Dia</i>. Porto Alegre, 8 de março de 1959)

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